« Voltar

Publicações

ASPECTOS JURÍDICOS DA OBRA INTELECTUAL PRODUZIDA PARA FINS DIDÁTICOS E A SOCIEDADE DE INFORMAÇÃO

12/09/2013

Fernando Previdi Motta
RESUMO
O presente trabalho analisa os aspectos jurídicos da obra intelectual, produzida para fins didáticos, no âmbito da Sociedade de Informação. Inicia demonstrando que a legislação autoral procura, ao lado do regime geral, estabelecer regimes especiais que atendam a natureza particular dos diferentes tipos de obras. Discorre sobra a natureza especial da obra intelectual produzida para fins didáticos, sua função e como vem sendo utilizada no âmbito da Sociedade de Informação. Destaca que as obras criadas para fins didáticos não podem se submeter a regras de limitação aos direitos autorais, quando tais limitações busquem tornar o acesso livre exatamente para os fins que motivou a criação da obra. O trabalho apresenta crítica ao anteprojeto de reforma da lei de direitos autorais, atualmente em consulta pública, pelo fato deste propor ampliação do uso livre de obras intelectuais, desde que para fins didáticos, sem levar em conta a natureza da obra produzida justamente para esse fim, o que tornaria tal tipo de obra praticamente sem proteção patrimonial e desprovida de efetivo interesse de exploração econômica. Enfim, analisa se no âmbito da Sociedade de Informação, considerando a amplitude de acesso, capacidade de armazenamento e a disseminação instantânea de conteúdos na internet, o uso privado livre, mesmo que sem fins comerciais, não teria o efeito de aproximar o regime das limitações ao direito de autor, quando permite a reprodução integral, do regime das obras de que integram o domínio público.
Mestre em Direito Empresarial pela Universidade Clássica de Lisboa-Portugal. Professor de Direito Empresarial e da Propriedade Intelectual do Centro Universitário CURITIBA – UNICURITIBA. Advogado empresarial em Curitiba.
PALAVRAS CHAVES: OBRA INTELECTUAL PROTEGIDA; DIREITO AUTORAL; FINS DIDÁTICOS; LIMITAÇÕES; SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO; DOMÍNIO PÚBLICO.

ABSTRACT/ou RESUMEN/ ou RÉSUMÉ/ ETC.
El presente trabajo analiza los aspectos jurídicos de la obra intelectual producida con fines didácticos, en el ámbito de la Sociedad de Información. Comienza demostrado que la legislación autoral, busca, junto al régimen general, establecer regímenes especiales que atiendan la naturaleza particular de los diferentes tipos de obras. Analiza la naturaleza especial de la propiedad intelectual protegida, desarrollada con fines didácticos, su función y como está siendo utilizada en el ámbito de la sociedad de Información. Destaca que las obras creadas para fines didácticos no pueden ser sometidas a las reglas de limitación de los derechos de autor, mientras que tal limitación, busque liberar el acceso exactamente para los fines que motivo la creación de la obra. El trabajo, presenta una crítica al ante-proyecto de reforma de la ley de derechos de autor, actualmente en consulta pública, por el hecho de proponer la ampliación del uso libre de las obras intelectuales, para fines didácticos, sin tener en cuenta la naturaleza de la obra producida, justamente para ese fin, lo que tornaría tal tipo de obra, prácticamente sin protección patrimonial y la despojaría de efectivo interés de explotación económica. En fin, se analiza en el ámbito de la Sociedad de Información, considerando la amplitud del acceso y la diseminación de contenidos en la internet, el uso privado libre, incluso sin fines comerciales, no tendría el efecto de aproximar el régimen de las limitaciones del derecho de autor, en cuanto este permite la reproducción integral, al regimen del dominio público.
KEYWORDS/ou PALAVRAS-CLAVE/ou MOT-CLÉS/ ETC.: PROTECCIÓN INTELECTUAL; COPYRIGHT; FINES DIDÁCTICOS; LIMITACIONES, SOCIEDAD DE LA INFORMACIÓN, DOMINIO PÚBLICO.

INTRODUÇÃO
O presente trabalho busca trazer contribuição para o desenvolvimento e aprimoramento da legislação brasileira que trata do Direito Autoral, sistema normativo que até hoje segue de perto a estrutura traçada pela Convenção de Berna2, pactuada fora do âmbito da Sociedade de Informação e, por desconhecê-la, alheia às suas especificidades.
Foi, ainda, elaborado com a finalidade de servir de instrumento para aprimorar os debates doutrinários dedicados à análise do Direito de Autor, às questões relacionadas à Sociedade da Informação e ao Domínio Público, em especial para evento promovido pelo Grupo de Estudos sobre Direitos Autorais e Informação da Universidade Federal de Santa Catarina (GEDAI-UFSC).
O problema posto em causa procura destacar, no caso especial das obras produzidas para fins didáticos, a necessidade de observância, por parte da norma, das características especiais de cada uma das diversas criações intelectuais, principalmente quando de seu enquadramento, sem ressalvas, ao regime geral das limitações ao direito do autor. Frisa ainda a necessidade de não subestimar os efeitos de disseminação de conteúdos, potencializados pela internet.
Neste sentido, a partir do exposto, reforça-se a importância e relevância de investigar a deficiência de submetermos diferentes obras intelectuais a um regime comum, sendo necessário contarmos com dispositivos que realmente protejam de forma eficiente os autores das mais diversas artes.
Finalmente, o presente estudo procura analisar se, modernamente, o uso da internet não aproxima o regime de proteção das obras colocadas em rede, especialmente na existência de limitação aos direitos autorais, do regime da obra que caiu em domínio público.
1 OS REGIMES ESPECIAIS DA LEI DE DIREITO AUTORAL
A estrutura jurídica do direito autoral está fundada na obra, não existe direito de autor sem obra e, por este motivo, seu estudo detalhado é obrigação que se impõe.
2 Convenção de Berna para a Proteção das Obras Literárias e Artísticas (Revisão de Paris, de 1971).
Contudo, as criações de espírito dão lugar a obras das mais variadas naturezas, o que exige deste ramo do direito uma individualização das obras segundo categorias próprias a que pertencem. Não é tarefa fácil, uma vez que as diversas espécies de obras, embora possam ser classificadas em grupos, conforme se assemelhem segundo determinado critério, muitas vezes apresentam diferenças inerentes ao seu tipo.
Com efeito, revela-se difícil a existência de um regime comum absolutamente idêntico a ser aplicado a todas as obras incluídas em determinadas classificações.
Neste tema, a lei dos direitos autorais estabelece regimes especiais que decorrem da natureza especial da obra, fixando regras que levam em conta, em relação à utilização normal, as particularidades de cada categoria de obra. Assim a lei traz normas especiais quando trata da obra arquitetônica, da obra de artes plásticas, da obra fotográfica, da obra cinematográfica, da obra musical entre outras, porque o regime geral não consegue atender integralmente às vicissitudes reclamadas pelos mais diversos tipos de obras. E nada impede que leis extravagantes estabeleçam “outros regimes especiais, fixados por razões pragmáticas”3. Veja-se o caso da lei n. 9.609/98, especialmente elaborada para os programas de computador.
É tema a ser aprofundado, fazendo-se necessário que a norma jurídica permita ao intérprete da lei, especialmente à doutrina, identificar as necessidades das obras atuais e eventualmente criadas, bem como as formas de sua utilização nos diversos meios existentes e que venham a ser inventados, principalmente por conta dos avanços constantes das modernas tecnologias.
Podemos citar exemplos demonstrando que, a par dos regimes especiais, normas do regime geral também devem ser analisadas segundo a natureza da obra em questão, como é o caso do direito de acesso, que não se aplica às obras criadas dentro do ambiente digital, especialmente à obra audiovisual digital, pois neste caso o exemplar não é único nem raro.
Sem falar do impacto das novas tecnologias nas obras clássicas, umas mais outras menos afetadas, mas em todas com sensível influência no regime4.
3 ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Autoral. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 400. 4 Cfr. WACHOWICZ, Marcos. A Revolução Tecnológica da Informação – Os Valores Éticos para uma Efetiva Tutela Jurídica dos Bens Intelectuais. in DIREITO DA PROPRIEDADE INTELECTUAL. Curitiba: Juruá, p. 53 e 55-61. Cfr., ainda, PARANAGUÁ, Pedro e BRANCO, Sergio. Direitos Autorais. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009, pp. 81-95.
A OBRA INTELECTUAL PRODUZIDA PARA FINS DIDÁTICOS E SUA FUNÇÃO NO ÂMBITO DA SOCIEDADE DE INFORMAÇÃO
As justificações para a proteção das obras intelectuais pelos direitos do exclusivo são de várias ordens, sendo que a estrutura jurídica do direito autoral brasileiro reconhece direitos de natureza patrimonial e extrapatrimonial. Assim, é comum falarmos em funções de recompensa ao autor pela contribuição ao mundo cultural; de reconhecimento à identificação da autoria; de criação de um ambiente produtivo favorável; incentivos à cultura, sem esquecer da função econômica, uma vez que numa sociedade capitalista existe inegável interesse na proteção das criações intelectuais, ante o valor que determinados trabalhos representam, especialmente no âmbito da sociedade de informação, onde há busca incessante pelos conteúdos informacionais.
O fato é que ninguém nega a importância da proteção do direito autoral.
Por outro lado, não são poucos os que enxergam na função social do direito de autor uma necessária “promoção do desenvolvimento econômico, cultural e tecnológico, mediante a concessão de um direito exclusivo (...) por um certo prazo, findo o qual a norma cai em domínio público”5 . Assim, a extensão do objeto e da duração do direito autoral são fixados nos termos da finalidade social buscada pelo legislador, estando ainda tais fatores condicionados aos ditames do interesse público.
Mas isso não exclui a necessidade de proteção efetiva. Destarte, no mesmo art. 27 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que proclama que “todo o homem tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do progresso científico e de fruir de seus benefícios”, o célebre diploma não pestaneja em estabelecer, por outro lado, que “todo o homem tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística da qual seja autor”.
Dentro desse contexto, objetivamente, necessário analisar três pilares fundamentais para o regime do direito autoral e que não podem ser confundidos: a obra protegida, os limites ao direito de autor e o domínio público.
A lei, ao definir o que merece ou o que não merece proteção trata do objeto do direito de autor. Nesse sentido a norma procura separar as formas de
5 CARBONI, Guilherme. Função Social do Direito de Autor. Curitiba: Juruá, 2006, p. 97.
expressão do espírito do indivíduo, que acrescentem algo de novo ao mundo cultural, dotadas de elemento que a tornem pessoal, autêntica e inconfundível, daquilo mais que se revestir de mera informação. E é justamente esse acréscimo pessoal ao conteúdo comum que é levado em conta para a proteção e retribuição ao criador da obra intelectual protegida.
Uma vez existindo obra intelectual protegida, esta possuirá prazo de proteção limitado no tempo, quando tal prazo se esgota, qualquer pessoa poderá livremente explorar a obra. Ao cessar o direito de exclusivo atribuído ao autor, de autorizar o uso de suas obras em troca de remuneração, a obra cai em domínio público, sendo transferida ao acervo cultural da sociedade, de onde o próprio autor retirou o substrato de sua criação.
Por fim, outra coisa são as limitações ao direito de autor, previstas no ordenamento jurídico brasileiro como sendo uma lista “numerus clausus”, que fixa situações excepcionais em que não é necessário autorização do autor para a utilização de obras protegidas. Tais limitações não podem, entretanto, colocar em causa a essência da lei, que é garantir direito de exclusivo ao autor.
Ocorre que no âmbito das limitações aos direitos de autor encontra-se sempre presente norma relativa ao uso para fins didáticos.
Existem diferentes terminologias para fazer referência à obra para fins didáticos, sempre de forma relacionada à educação, assim, fala-se em obras para “fins educativos”, “fins de educação”, “fins de estudo”, “atividades educativas”, entre outras. Tais expressões significam que a obra está diretamente relacionada aos atos necessários para viabilizar o processo ensino-aprendizagem. Ganha a vitrine então o uso privado, puxando a reboque aqueles que defendem que o acesso à educação, informação e cultura implica no acesso amplo às obras para fins didáticos, sem necessidade de remuneração aos titulares. Se uma obra for usada para fins de estudo e ensino, segundo alguns, deveria ser de amplo acesso, o que na prática significa algo muito próximo do uso livre, aproximando-se do regime da obra em domínio público.
A situação agrava-se porque nestes casos existe forte tendência da sociedade, em geral, de posicionar-se favoravelmente à possibilidade de livre utilização de obra intelectual protegida, desde que para fins educacionais ou didáticos, sob o fundamento de que isso seria imprescindível para o desenvolvimento cultural e científico nacional. Mas é preciso certa dose de cuidado na defesa dessa tese. Não é demais lembrar que não há nada mais imprescindível para a dignidade do ser humano do que alimentos e moradia; para a saúde do que os medicamentos e, tudo isso, não faz com que seja regra tal fornecimento no mercado de forma gratuita.
Não obstante nobre fim vislumbrado por parte dos que enxergam dessa forma, a verdade é que a obra didática é tão ou mais importante do que as demais espécies de obras.
Além disso, não se pode confundir os institutos de domínio público e limites aos direitos de autor. A grande questão a ser observada, é que existem autores que criam justamente com a função de produzir obras para serem utilizadas exclusivamente para fins didáticos. São obras de geografia, história, português, matemática, das mais diversas ciências e áreas do conhecimento, na pré-escola, no ensino fundamental e superior, além das atividades extraclasse. Tais obras são ferramentas do conhecimento e do ensino; otimizam e facilitam o aprendizado e desenvolvimento intelectual do homem. Dentre outros benefícios, possibilitam ao ser humano desenvolver sua capacidade de relacionar-se com o mundo que o cerca, consolidando o processo sistemático de humanização e construção de sua cidadania. Não há como se pensar na construção do conhecimento sem passar pelo livro, pelo texto literário chegando até a moderna obra audiovisual.
Concluímos, então, que a análise da natureza de determinada obra literária ou artística, para que a norma seja aplicada de forma adequada, exige também olharmos para o outro pólo da relação, ou seja, para a figura do autor. No caso da obra produzida para fins didáticos esta é elaborada justamente com a finalidade de alcançar aqueles que buscam o estudo e o aprendizado. Não há outra razão nessa obra que não seja alcançar aquele que procura o saber. São obras produzidas e elaboradas exclusivamente para atender ao público que estuda e aprende, ou seja, para tornar o estudo eficiente e não tem serventia fora desses propósitos. Professores, autores e criadores de conteúdo que fazem obras para dirigir e orientar a aprendizagem, na maioria dos casos, são incentivados, buscam remuneração e almejam mercado para suas obras junto aos colégios, faculdades, entre alunos, professores e estudiosos.
E é justamente pelo fato de existirem obras com naturezas diferentes que percebemos a extrema relevância desse reconhecimento por parte do regime jurídico autoral. Afinal de contas, a verdadeira justiça – finalidade da norma – é alcançada quando tratamos desigualmente os desiguais, na exata medida de suas necessidades6.
Não obstante possa parecer que a referência é previsível, é atual e oportuno aplicarmos ao tema semelhante raciocínio utilizado por Ruy Barbosa, na célebre obra “Oração aos Moços”, quando afirma que “Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não
Não pode a lei, em regra, outorgar proteção forte aos criadores de um determinado tipo de obra e não fazer com uma ou outra categoria diversa.
Outro fato relevante é o advento da Sociedade da Informação, que corresponde a uma sociedade cujo funcionamento recorre crescentemente a redes digitais de informação, “refere-se a um modo de desenvolvimento social e econômico em que a aquisição, armazenamento, processamento, valorização, transmissão, distribuição e disseminação de informação conducente à criação de conhecimento e à satisfação das necessidades dos cidadãos e das empresas”, desempenha um papel central na atividade econômica e na criação de riquezas, caracterizando-se, também, como uma sociedade de mercado7.
Essa nova sociedade ganha a cada dia milhões de adeptos, basta que a pessoa tenha acesso a um equipamento e possibilidade de conectar-se à internet.
A obra para fins didáticos, via de regra, prescinde do original e assume a forma de textos literários e imagens, o que faz que se constitua numa obra digitalizável por excelência. Num ambiente marcado pela informação infinita, assumem destaque as ferramentas de seleção e pesquisa, que permitem a localização daquilo que é buscado pelo usuário. Mas os conteúdos protegidos possuem ainda mais valor, servindo de estímulo a empresas que atuam nessa área. Ademais, sendo a cultura, informação e educação bens não escassos, mas de larga fonte, não se justifica a violação dos interesses materiais do autor quando podem tais direitos serem compatibilizados. E mesmo na hipótese de determinada criação alcançar o “status” de obra de interesse público, ainda assim tal situação poderia dar ensejo a aplicação de outros institutos, como a oportunidade de desapropriação das faculdades patrimoniais do autor em relação a determinada obra, instituto possível, como qualquer outro bem, desde que muito bem fundamentado8 ou, ainda, p licenciamento compulsório, atendidos os requisitos próprios, sendo que a excepcionalidade da medida bem como a previsão da justa remuneração teria até mesmo um viés de consagração do criador e não violaria seus interesses materiais.
Cumpre-nos analisar de que forma a lei pode ter sua eficácia garantida diante desse fenômeno, e se conseguiria limitar ou até mesmo evitar o acesso a conteúdos protegidos na Sociedade de Informação. igualdade real. 7 Cfr. Livro Verde para a Sociedade da Informação, Ministério da Ciência e da Tecnologia de Portugal, disponível em ‘http://www.si.mct.pt’. 8 ABRÃO, Eliane Yachouh. Direitos de Autor e Direitos Conexos. São Paulo: Editora do Brasil, 2002,
p. 143.
4. CONSIDERAÇÕES SOBRE O ALCANCE DO ANTEPROJETO DE REFORMA DA LEI AUTORAL EM RELAÇÃO À OBRA INTELECTUAL PRODUZIDA PARA FINS DIDÁTICOS
Como já foi visto, a lei autoral brasileira prevê determinadas situações nas quais a utilização de obras intelectuais protegidas dispensa a autorização do autor, desde que para fins didáticos ou de estudo.
A primeira referência trata do consagrado direito de citação, previsto no art. 46, III, LDA, segundo o qual não ofende a lei autoral “a citação em livros, jornais, revistas ou qualquer outro meio de comunicação, de passagens de qualquer obra, para fins de estudo, crítica ou polêmica, na medida justificada para o fim a atingir, indicando-se o nome do autor e a origem da obra”. Não há liberdade de expressão sem o direito de citação, direito esse que também é uma emanação do princípio da liberdade de informação. Outro dispositivo que trata de obra de fim didático é o art. 46, IV, LDA que trata do “apanhado de lições em estabelecimentos de ensino por aqueles a quem elas se dirigem, vedada sua publicação, integral ou parcial, sem autorização prévia e expressa de quem as ministrou”. Trata-se de hipótese que só encontra razão de estar prevista em lei, por conta da sanha protecionista, é uma situação na qual jamais se imaginaria o contrário. Também o art. 46, VI, LDA trata do tema, ao estabelecer que não constitui ofensa à lei autoral a “representação teatral e a execução musical, quando realizadas no recesso familiar ou, para fins exclusivamente didáticos, nos estabelecimentos de ensino, não havendo em qualquer caso intuito de lucro”. Trata-se de hipótese bastante restrita, na qual não se percebe possibilidade de atentar contra os legítimos interesses do autor na exploração econômica de sua obra.
Além dessas previsões legais, podemos incluir a obra para fins didáticos dentro da limitação que consagra o uso livre das obras autorais para a produção de prova judiciária ou administrativa, bem como nos casos de paródias e paráfrases ou de reprodução de pequenos trechos.
O anteprojeto de reforma à Lei de Direitos Autorais, colocado em consulta pública pelo Ministério da Cultura em meados de 2010, apresenta regras fixando limites aos direitos autorais, aplicáveis às criações intelectuais produzidas para fins didáticos, que representam grave golpe na proteção e incentivo aos autores dessas obras.
Segundo o parágrafo único, do art. 46, do referido anteprojeto, não constitui ofensa aos direitos autorais a reprodução, distribuição e comunicação ao público de obras protegidas, dispensando-se, inclusive, a prévia e expressa autorização do titular e a necessidade de remuneração por parte de quem as utiliza, quando essa utilização for para fins educacionais, didáticos, informativos, de pesquisa ou para uso como recurso criativo e, desde que feita na medida justificada para o fim a se atingir, sem prejudicar a exploração normal da obra utilizada e nem causar prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores.
Tal norma permite, sempre que o uso for privado e para fins educacionais ou didáticos, a livre utilização da obra intelectual, que deixa de ser patrimonialmente protegida nestes casos. Ocorre que no ambiente da Sociedade da Informação, em que as pessoas estão criando o hábito regular de buscar informação na internet, uma regra como essa causaria o drástico efeito de aproximar livros, trabalhos e toda sorte de trabalhos didáticos, do regime da obra que está em domínio público. Se por um lado os direitos morais do autor permaneceriam protegidos, seus direitos patrimoniais seriam altamente prejudicados. Em termos práticos, somos obrigados a concluir que seria muito difícil evitar a disseminação de tais conteúdos na internet, porque a interconexão de computadores em rede permitiria o fácil compartilhamento de arquivos, que inevitavelmente estariam armazenados nos mais diversos tipos de páginas eletrônicas, resultando na integral disponibilização em rede e livre acesso das obras intelectuais criadas para fins didáticos. E de nada adiantaria a vinculação dessa exceção à regra dos três passos, porque na prática o uso da obra, individualmente considerado, dificilmente ultrapassaria a medida justificada do fim a atingir, nem prejudicaria a exploração normal da obra e nem causaria prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores, somente depois a disseminação virtual os efeitos seriam sentidos, quando muito pouca coisa poderia ser evitada.
Outra norma constante no anteprojeto, que padece de grave defeito, é aquela prevista no art. 46, inciso XII, que altera a lei atual, procurando fazer com que não constitua ofensa aos direitos autorais, dispensando-se a autorização do titular e a necessidade de remuneração por parte de quem as utiliza, a reprodução de palestras, conferências e aulas por aqueles a quem elas se dirigem, vedando apenas a publicação de tais conteúdos. Só que a regra, tal como está posta, não limita a reprodução para o uso próprio, como deveria. Sabendo que por reprodução entende-se a cópia de exemplar de obra, incluindo seu armazenamento permanente ou temporário por meios eletrônicos, o destinatário de palestra, conferência ou aula, passa a ter o direito de livre reprodução de tais criações, inclusive podendo postar tais conteúdos na internet o que violaria interesses legítimos não só do titular de direitos autorais sobre a criação, mas direitos de imagem daquele que transmite a informação.
Reprodução tem uma pluralidade de manifestações e trata-se de um termo muito amplo. Não discutindo a confusão terminológica e prática dos conceitos técnicos referentes às faculdades patrimoniais contidas na lei neste momento, o que se nota é que o dispositivo em comento não veda expressamente a comunicação ao público, faculdade que permite a apresentação da obra. O uso privado do conteúdo de aulas e palestras ministradas parece ser a finalidade da lei, ou pelo menos, o razoável nestas hipóteses, mas quando a obra pode ser de qualquer forma comunicada e transmitida a um número indeterminado de pessoas, ultrapassa-se o âmbito privado e atinge-se os direitos patrimoniais do autor. Tamanha a imprecisão da lei nesse sentido que não dificulta interpretação de que a inserção na internet, de aulas e palestras gravadas, seria algo autorizado àqueles a quem se dirigisse.
5. A OBRA EM DOMÍNIO PÚBLICO E A OBRA INCLUÍDA NA INTERNET
Uma vez que a sociedade acolheu a internet como poderoso instrumento de pesquisa e relacionamento social, até por força da eficiência, celeridade, desburocratização e eliminação de barreiras que proporciona, também trouxe à tona questões a serem equacionadas em matéria de direitos do exclusivo. Seria possível evitar que uma obra que é reproduzida na internet, na prática, caia em domínio público ? O texto frio da lei é eficiente para conter esse verdadeiro “tsunami virtual”, chamado internet ? Até hoje a tentativa de repressão não trouxe sucesso concreto. Como fazer os usuários da internet entenderem que um conteúdo que chega livremente até seu equipamento, dentro de um ambiente privado, não pode ser acessado sem autorização do titula de direitos sobre a obra ?
Há os que defendam que a multiplicação exponencial da informação via internet é muito difícil, senão impossível de ser evitada. É que a amplitude de acesso, aliada à capacidade de armazenamento quase ilimitada, em “sites”, “blogs”, “emails” e redes sociais, somados ainda à disseminação instantânea, permite a multiplicação exponencial dos conteúdos disponibilizados, fazendo-nos crer que, uma vez a informação tenha ingressado na rede, nunca mais sairá dela. Sem falar dos programas de computador, ferramentas que aumentam e otimizam as formas de compartilhamento da informação.
Da forma como hoje a internet está concebida, não acaba tornando os conteúdos nela inseridos muito próximos daqueles bens que integram o domínio público ? Para ASCENSÃO “o domínio público é a situação normal da obra intelectual. É o espaço de diálogo social livre”, “os bens do domínio público são verdadeiramente bens não apropriados, bens livres. Eles podem naturalmente ser disfrutados por todos sem perda nem alteração da natureza. É a lei que os rarifica artificialmente para criar um exclusivo” 9. E não é isso que tem ocorrido na prática com os conteúdos que são disponibilizados na rede, um obra não acaba podendo ser desfrutada por todos aqueles que acessam a rede ?
Não há dúvidas que a imaterialidade aliada à facilidade de cópia faz com que os bens intelectuais aproximem-se cada vez mais dos bens livres, e isso é potencializado no caso da internet, que possuindo marcante característica de uma super memória, propicia a criação, transmissão e preservação dos conteúdos, trazendo para dentro dela grande parte, se não a totalidade, do mundo cultural e de todo o seu acervo. Ora, na medida em que se permitem limitações aos direitos dos autores, autorizando que uma obra possa ser reproduzida na íntegra, por meio da internet, ocorre uma aproximação potencial da obra ao regime do domínio público, com exceção dos direitos morais, que são preservados, embora nem sempre respeitados. RONALDO LEMOS lembra bem que “é a sociedade que decide fazer com que uma parte desses bens ‘não competitivos’ não seja tratada como commons” e que “com isso, a sociedade cria diversos artifícios que trazem uma competitividade artificial a esses bens que não fazem parte da sua natureza” estabelecendo um monopólio legal sobre conteúdos que naturalmente seriam de acesso amplo, sendo que, normas nesse sentido, estabelecem que após determinado prazo, “essas criações voltarão à comunidade de modo livre, tornando-se então res commune, como é de sua natureza, compondo então o domínio público”10.
As fórmulas para evitar que isso ocorra, antes de seu devido tempo e enquanto ainda durarem os direitos de autor, ocupam hoje a preocupação dos estudiosos do tema, no mundo todo. Já são bem conhecidas fórmulas que defendem o reforço das
ASCENSÃO, José de Oliveira; Patrícia de Carvalho (Coord.) A Questão do Domínio Público. in PROPRIEDADE INTELECTUAL. Curitiba: Juruá, 2008, p. 210. 10 LEMOS, Ronaldo. Direito, Tecnologia e Cultura. Rio de Janeiro: FGV, 2005, pp. 17-18.
normas que protegem os direitos autorais, tornando-as ainda mais rígidas11, o que por outro lado, depende também do sucesso dos mecanismos tecnológicos de proteção. Tem os que preconizam a criação de novos modelos de negócios, alternativos aos atuais. Neste âmbito, idéias vão surgindo – sem que estejam imunes a críticas das mais variadas -como o compartilhamento legal, modelo proposto que permitiria o livre intercâmbio de arquivos digitais na internet, desde que sem a finalidade de lucro, sendo que o particular que aderisse a esse sistema pagaria uma taxa junto ao seu provedor de acesso, que seria repassado para uma entidade de gestão coletiva, para que o montante final fosse repartido de acordo com o consumo da obra. Cita-se ainda a gestão de direitos reprográficos, modelo quem que os titulares de obras licenciadas receberiam uma parte do valor arrecadado com os serviços de fotocópia. O domínio público remunerado12 é outra solução apontada, na medida em que a proteção legal diminuísse, os criadores de sobras objeto de acesso livre deveriam ser de algum modo recompensados. Contudo, sem que tenham sido ainda testadas de forma global, tais soluções despertam inúmeras desconfianças por parte dos céticos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os bens intelectuais não são suscetíveis de apropriação física, apenas a lei pode impor, artificialmente, restrição de uso por parte dos demais indivíduos. De outro vértice, os bens intelectuais não são fornecidos pelo meio ambiente sem a participação humana, dependem de intervenção do homem para que possam ser criados, e de memória para que sejam transmitidos e preservados. Mas marcante característica da internet é também ser uma super memória, que permite o armazenamento de grande parte, se não a totalidade, do mundo cultural e de todo o seu acervo cultural.
Portanto, parece-nos inegável que, atualmente, a grande maioria das obras inseridas na internet acabam, na prática, aproximando-se do regime aplicável às obras que caem em domínio público. Titulares de direitos autorais reclamam que o compartilhamento de arquivos na internet lhes acarreta prejuízos econômicos e desestimula a criação. Do outro lado, particulares defendem que o compartilhamento
11 Foi este o modelo seguido pela atual lei autoral brasileira, lei n. 9.610 de 1998.
O "domínio público remunerado" já chegou a ser cogitado no Brasil pela lei autoral anterior, lei n. 5.988 de 1973, visando a constituição de um fundo a ser administrado pelo Conselho Nacional de Direito Autoral (CNDA), mas foi logo revogada.
feito sem fins comerciais trata-se de um uso social já enraizado na Sociedade de Informação, desde que a internet foi concebida.
A norma, se delimitar de forma clara o campo do permitido e o do proibido, conjugada a imprescindíveis dispositivos tecnológicos de segurança, aliada ainda a uma incessante conscientização social de valores, pode se tornar uma saída, desde que minimizados os efeitos prejudiciais trazidos por todo monopólio ditatorial e perpétuo. Os novos modelos de negócios, bem como o aprimoramento da gestão coletiva dos direitos autorais revelam-se ainda mais interessantes para solucionar novos paradigmas do ambiente virtual.
Contudo, até que uma solução satisfatória seja encontrada, uma norma jurídica, embora correta na sua finalidade geral, não pode ser aplicada indiscriminadamente a todos os tipos de obra sem que seja analisado o regime especial a que deve ser submetida a obra específica, por conta de sua própria natureza e, também, por conta dos novos meios de comunicação e reprodução de obras. É o caso das obras produzidas para fins didáticos, que merecem proteção equivalente aos demais tipos de obra, que não possuem idêntico fim e, portanto, podem ser exploradas em outros segmentos.
Verdadeiro avanço na defesa da função social do direito do autor seria a diminuição dos prazos de proteção, não a discriminação de certa categoria de criadores intelectuais, que seriam prejudicados em detrimento dos demais.
Muito se criou na humanidade antes do advento da lei de direitos autorais, não sendo obviamente a proteção a condição “sine qua non” da produção intelectual. Mas não há dúvidas que o reconhecimento e a valorização daqueles que criam desenvolve a economia, otimiza e acelera a produção cultural. De qualquer sorte, cabe à sociedade decidir o que proteger e em que medida. Não pode, entretanto, outorgar proteção geral que beneficie apenas certa classe de autores e descuidar que, igual proteção, seja concedida a todos os demais criadores intelectuais, eis que a justificativa e fundamento para a proteção não discrimina as diferentes artes e obras decorrentes, mormente no império da Sociedade de Informação. REFERÊNCIAS
ABRÃO, Eliane Yachouh. Direitos de Autor e Direitos Conexos. São Paulo: Editora
do Brasil, 2002.
ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Autoral. Rio de Janeiro: Renovar, 1997.

_____ A Questão do Domínio Público. in PROPRIEDADE INTELECTUAL.
Patrícia de Carvalho (Coord.). Curitiba: Juruá, 2008.
BARBOSA, Rui. Oração aos Moços. São Paulo: Casa Editora O Livro, 1921.
CARBONI, Guilherme. Função Social do Direito de Autor. Curitiba: Juruá, 2006.
LEMOS, Ronaldo. Direito, Tecnologia e Cultura. Rio de Janeiro: FGV, 2005.
PARANAGUÁ, Pedro e BRANCO, Sergio. Direitos Autorais. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2009.
WACHOWICZ, Marcos. A Revolução Tecnológica da Informação – Os Valores
Éticos para uma Efetiva Tutela Jurídica dos Bens Intelectuais. in DIREITO DA
PROPRIEDADE INTELECTUAL. Curitiba: Juruá, 2008.